No Oeste da Bahia, regras da APA da Bacia do Rio de Janeiro, liberam Cerrado para o agronegócio.

18/07/2022

Aprovado no fim de maio no Conselho Estadual de Meio Ambiente (CEPRAM) com os votos do agronegócio e setor público, o plano de manejo institui as regras de uso para a unidade de conservação no oeste baiano. A Área de Proteção Ambiental (APA) de mais de 350 mil hectares em Barreiras e Luís Eduardo Magalhães é intensamente explorada para plantios de soja, algodão e milho. Esses plantios de monocultura fazem uso intensivo de água, desmatam vegetação nativa e desgastam o solo. Organizações da sociedade civil questionam a aprovação do plano que foi elaborado e financiado através de convênio do INEMA com a AIBA, associação que reúne o agronegócio baiano.

Segundo manifestação enviada ao CEPRAM pelos conselheiros representantes da ADES, Gambá e Gérmen no CEPRAM, as regras do zoneamento proposto não buscam conciliar o setor produtivo com a conservação do Cerrado, já que classificam 66% de sua área como Zona de Uso Intensivo. “As diretrizes propostas pelo Plano são as mais brandas possíveis, sem que nada diferencie os manejos na APA dos manejos regulares do solo e da água em uma área comum”, diz o documento. Com base na manifestação das três organizações, o conjunto da sociedade civil votou contra a aprovação, solicitando que o processo entrasse em diligência para rever o plano, o que não foi atendido.

A resistência do governo em frear o avanço do agronegócio no Oeste da Bahia e, consequentemente, o desmatamento de Cerrado, vai na contramão dos pactos globais e nacionais sobre mudanças climáticas que prevêem a necessidade urgente de diminuir as emissões. O Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa do estado para os anos de 2017, 2018 e 2019 mostrou que justamente o desmatamento e a atividade agropecuária são os líderes de emissões no estado. O documento, divulgado no último dia 20, mostra que os dois setores juntos são responsáveis por 63% das emissões da Bahia. O Plano de Manejo sem restrições ao desmatamento mantém a tendência atual, ao invés de se comprometer com a emergência climática.

Papel do CEPRAM na aprovação

O conselheiro do CEPRAM pela UFBA, Severino Soares Agra Filho, avalia como apressada e pouco fundamentada a aprovação. “Questionei se a informação estava suficientemente adequada para entrarmos em uma decisão de aprovar o plano. Para uma decisão dentro de um colegiado existe um requisito procedimental, normativo, que se você não tem uma instrução adequada, o processo não pode ser votado. Então pedimos que voltasse a diligência para completar as informações, mas não teve jeito. O governo alegou que tinha pressa na aprovação e que adiar a decisão seria prolongar a decisão”, relatou.

Para ele, depois de quase 30 anos sem plano de manejo e 7 anos de elaboração do instrumento – desde 2016 –  houve uma pressão descabida para sua aprovação no Conselho. “Nós passamos três reuniões discutindo uma norma de energia solar que todos estavam favoráveis. Um plano de manejo desse, de uma área altamente crítica e totalmente vulnerável, era para gente fazer isso com pente fino, detalhado, e colocar restrições radicais sobre o uso”, reclama.

Ele afirma que a decisão reflete uma diminuição no papel do Conselho na validação de políticas públicas e de conciliação de diferentes interesses na sociedade. “Hoje, cada um fala o que quer, depois vota. Se o Governo se junta com o agronegócio eles conseguem aprovar e pronto. Esse não é o papel do CEPRAM, ele deveria ser um órgão de gestão de conflitos, um espaço para criar formas de consenso, conseguindo que cada setor ceda um pouco – e não só bater o martelo”.

APA sem gestão

A APA foi criada em 1993 e o decreto de criação destaca a Cachoeira do Acaba Vida, rios cristalinos, nascentes em áreas de várzea e vegetação de buritis como atributos a serem conservados frente a ocupação antrópica desordenada. Esse tipo de unidade de conservação é de uso sustentável, ou seja, permite propriedades privadas em seu interior e o desenvolvimento de uma série de atividades, mas isso deve ser feito de acordo com um zoneamento que priorize a conservação ambiental. “A APA só existe no Brasil, é uma coisa bem singular. Quando se decreta uma APA quer dizer que vou focar a gestão ambiental priorizada. É onde você vai realizar uma gestão mais intensiva, onde vou olhar mais de perto para cada área e suas regras para garantir a conservação do meio ambiente”, explica Severino.  

No entanto, sem o plano de manejo e nenhuma outra forma de gestão por parte do INEMA, a ocupação intensiva da área por monoculturas aconteceu de forma desordenada. Neste longo intervalo, de 1993 até agora, as áreas naturais deram lugar à agricultura de sequeiro e irrigada. As áreas antropizadas somam quase 66% da área da APA, sendo que, ao considerar as áreas do entorno em uma análise na escala de paisagem, essa porcentagem não chega a 52%. Este dado, veiculado no plano de manejo aprovado, surpreende ao mostrar que há mais antropização dentro da Unidade de Conservação do que em seu entorno. Além disso, 66% é exatamente a porcentagem do território prevista para Zona de Uso Intensivo, sinal de que não há nenhuma intenção em mudar a forma que vem sendo ocupada, ou seja, recuperar vegetação nativa e frear o avanço da fronteira agrícola.  

O geógrafo e professor da UFOB, Mário Alberto dos Santos, aponta que esta zona, onde não há praticamente restrições à ocupação e manejo, é ocupada pela agricultura de commodities. “Quando a gente avalia a predominância de um modelo de produção de commodities agrícolas no território da APA, podemos concluir que não há preocupação efetiva com a conservação e uso sustentável que uma APA demandaria. Seriam necessárias grandes alterações no modelo de produção de commodities agrícolas para podermos dizer que há um modelo sustentável de produção. E a gente tem exemplos, em alguns lugares do Brasil nós vemos produtores de commodities em larga escala – fazendas de café, fazendas de gado – com modelos e sistemas de produção e manejo que incluem práticas conservacionistas que ainda não observamos de forma ampla e significativa no Oeste da Bahia”.

Papel do agronegócio e das comunidades na APA

Para Mário, apesar de a atividade ser vista como motor de desenvolvimento da região, traz benefícios muito limitados para a sua população e para o território. “A soja, o algodão e o milho são culturas de ciclo curto e têm um valor agregado muito reduzido, principalmente pela forma que são comercializadas. Eu diria que há uma questão ligada ao modelo de desenvolvimento. Você trabalha com grandes propriedades, usa sementes transgênicas, cultiva uma única planta e tem um grande uso de agroquímicos e tecnologia. Como resultado, você tem um potencial de empregabilidade muito baixo. Como tudo é mecanizado, o número de funcionários é muito reduzido. A concentração de renda também é outra característica desse modelo, porque é baseada em grandes propriedades. Fundamentalmente é um problema de modelo de economia política praticada na região”, observa Mário.

Embora tenha sido realizado pela AIBA, o plano pouco fala sobre o setor do agronegócio. Não há uma caracterização do setor nem de suas práticas, como por exemplo o volume de água outorgado para irrigação e de agrotóxicos utilizados – entre outros aspectos que permitiriam balizar melhor os regramentos para o setor que é o principal degradador da APA.

As comunidades presentes na APA foram descritas como ocupando majoritariamente região leste da bacia, onde o solo não é adequado para plantio, estão agrupadas em minifúndios (menor do que 65 hectares) e quase sempre possuem problemas de acesso à água, saneamento básico, serviços de saúde e educação.

Moradores destas comunidades fizeram contribuições ao plano sugerindo principalmente um incentivo ao turismo sustentável e outras alternativas de geração de renda. Mas as expectativas foram frustradas. Eles afirmam que não vêm incentivos a modelos de desenvolvimento mais sustentáveis.

Sobre as comunidades da APA, o professor Mário dos Santos ainda observa que algumas delas, sob alguns aspectos, poderiam ser consideradas comunidades tradicionais, mas foram caracterizadas como agricultores familiares no plano. Isso gera dificuldades na definição de políticas públicas específicas para esses grupos. “A gente elimina da perspectiva do plano de manejo as políticas públicas e estruturas jurídicas que temos no Brasil sobre comunidades tradicionais. Isso pode ser um problema”, comenta.

Em 2019, a então diretora do INEMA, Márcia Telles, foi questionada sobre as numerosas e expressivas autorizações para supressão de vegetação de Cerrado no Oeste baiano. Ela respondeu se tratar de uma questão de legalidade que só poderia ser alterada pelo poder legislativo. “Considere que se você tiver sua reserva legal preservada e as áreas de preservação permanente, entende-se que todo o resto poderia ser retirado. Não estou entrando no mérito do bom e do ruim, estou falando do que a lei permite. Se vamos discutir o que queremos preservar de Cerrado daqui para a frente, temos que alterar a lei”, afirmou à época, contrariando vários especialistas que apontam instrumentos para que o estado diminua o desmatamento sem ferir a lei. 

Em 2022, a Secretaria de Meio Ambiente – hoje comandada por Márcia Telles –  e INEMA tiveram a chance de construir um plano de manejo com regras que ajudassem a controlar o desmatamento em uma área de 350 mil hectares e não o fizeram. Ao optar por um zoneamento permissivo da APA da Bacia do Rio de Janeiro, fica claro que a defesa não era da legalidade e sim de um modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio.

Monocultura na região da APA Bacia do Rio de Janeiro
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