20/06/2012
O jeitinho brasileiro dominou o mundo e o rascunho do documento final da Rio+20, que os chefes de Estado e governo examinam a partir de hoje, é um texto enxuto e vago, sem indicar compromissos concretos para viabilizar as mudanças que o momento exige. Foram reafirmados princípios e direitos importantes, como o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas e o direito humano à água e ao saneamento, mas a simples reiteração do que já havia sido acordado é insuficiente perto das transformações exigidas pela crise global. A força das corporações, por outro lado, mantém-se intacta, assim como permanecem os obstáculos para a superação do quadro de desigualdades.
Não houve firmeza nem em relação aos principais resultados esperados da conferência: o cogitado Conselho de Desenvolvimento Sustentável foi trocado por um fórum intergovernamental de alto nível; não foi criado um fundo de apoio ao desenvolvimento dos mais pobres; o PNUMA sai fortalecido, mas não se decidiu como e ficou mais longe a ideia de uma agência ambiental mundial; e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) também não foram de fato criados, apenas reconhecidos como como “importantes” e “úteis”, com a indicação de que sejam “coerentes e integrados na Agenda de Desenvolvimento das Nações Unidas para além de 2015″.
Um passo importante foi a inclusão das expressões Direito da Natureza e Mãe Terra, conforme proposta da Bolívia, com o apoio dos povos indígenas (parágrafo 39). Em contrapartida não entraram os “direitos sexuais e reprodutivos”, desagradando as mulheres, e a proposta de um Alto Comissariado para as Futuras Gerações, desagradando os jovens.
A forma como o rascunho foi concebido permite a interpretação de que o governo brasileiro utilizou a tática do “agradar a gregos e troianos” para ver a aprovação do documento. Mantém o que já estava consagrado, mas não sinaliza maiores avanços. Se arrisca a desagradar pelo que não inclui do que a gerar resistência pelo que pode indicar.
Objetivos estratégicos do governo brasileiro também parecem ter contribuído para a postura essencialmente mediadora, demontrando “falta de ambição”, na expressão muito utilizada nos bastidores e corredores do Riocentro. Um deles é o empenho por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, pelo que definitivamente não é bom criar muitas arestas com seus integrantes com poder de veto: Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China. Coincidência ou não, partiu desse conjunto de países grande parte dos vetos a maiores avanços no rascunho do texto final da rio+20.
Como parte dos objetivos estratégicos do Brasil, está a prioridade dada para as áreas social e econômica, em relação à ambiental, e o temor a criar arestas com setores como o agronegócio, em um momento de controvérsia relacionada ao Código Florestal. Esses olhares do governo brasileiro – seguindo uma tendência histórica, não se limitando a esse ou aquele partido político – infuenciam obviamente a sua política externa, e não é diferente no caso da condução das negociações na rio+20, como país anfitrião.
Ponto por ponto – Uma avaliação ponto a ponto dos aspectos mais polêmicos do rascunho que será discutido entre 20 e 22 de junho pelos governantes confirma a “falta de ambição” apontada por muitos. Como os juristas participantes do encontro realizado entre 15 e 17 de junho , pelo Centro Internacional de Direito Comparado do Meio Ambiente, Fundação Getúlio Vargas e Instituto de Direito Ambiental (Centre International de Droit Comparé de l´Environnement, Fondation Getulio Vargas et Environmental Law Institute). Os juristas atribuiram essa postura da Rio+20 a um “pequeno número de Estados especialmente influenciados por agentes econômicos e financeiros que serão responsabilizados, pelas gerações presentes e futuras, por não terem tomado em 2012 as medidas exigidas pela gravidade do estado mundial do meio ambiente e pela urgência de agir”.
Pobreza – A erradicação da pobreza é apontada como “o maior desafio global que o mundo enfrenta hoje, e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável. Neste sentido estamos comprometidos com a humanidade livre da pobreza e da fome como uma questão de urgência” (parágrafo 2).
Princípios de 1992 – Reafirmação de ”todos os princípios da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, incluindo, inter alia, o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas, tal como estabelecido no Princípio 7 da Declaração do Rio de Janeiro” (parágrafo 15). Muito tempo foi gasto nas negociações da Terceira PrepCom e as informais conduzidas pelo Brasil, para a manutenção desses princípios, principalmente o das responsabilidades comuns mas diferenciadas, em função da oposição de países como Estados Unidos. Isso indica que devem ter sido negociados muitos cortes, para que o princípio fosse mantido.
Mudança climática – As mudanças climáticas são reconhecidas como “crise transversal e persistente”, que merece “ação urgente e ambiciosa”, de acordo com as disposições da Convenção das Mudanças Climáticas (parágrafo 25). O texto também manifesta “preocupação com a diferença significativa entre o efeito agregado das promessas de partes de mitigação em termos de emissões globais anuais de gases de efeito estufa até 2020, e as vias de emissões globais consistentes com uma chance provável de manter o aumento da temperatura média global abaixo dos 2 ° C ou 1,5 ° C acima dos níveis pré-industriais”. Entretanto, não são apontados os desejados níveis de corte dessas emissões e nem há referências ao pós-Kyoto (par.191). Não é citada uma referência explícita ao papel dos combustíveis fósseis no aquecimento global. É citado, ao contrário, o caminho do “mix de energia apropriada para atender às necessidades de desenvolvimento, incluindo através de uma maior utilização de fontes de energia renováveis e outras tecnologias de baixa emissão e o uso mais eficiente da energia, maior dependência de tecnologias energéticas avançadas, incluindo tecnologias mais limpas de combustíveis fósseis e o uso sustentável dos recursos energéticos tradicionais”, de acordo com as decisões de cada país (par.127 e 128). Não são citados também os cortes drásticos de subsídios aos combustíveis fosseis, defendidos por muitos ambientalistas e cientistas.
Corporações – Em vários pontos do documento (como no parágrafo 46) é citada a parceria público-privada como ingrediente importante para a construção do desenvolvimento sustentável. A apresentação de relatórios de sustentabilidade é indicada como importante, mas não como uma medida absolutamente essencial (parágrafo 47).
Agronegócio – É reconhecida a ”necessidade de promover, valorizar e apoiar a agricultura mais sustentável, incluindo as culturas, pecuária, silvicultura e pescas e aquicultura”, como instrumento para proteção dos recursos naturais e manejo adequado da terra (par.111). Também ressaltada a “necessidade de melhorar os sistemas de produção sustentáveis de gado” (par.112). Mas não foi destacado o imperativo de redução de emissões de gases-estufa pelo agronegócio, lembrando que um estudo da FAO apontou a pecuária como o maior responsável individual por emissões (18% do total).
Transferência de tecnologia – Outro ponto que envolveu muitas negociações prévias, pela resistência de alguns países ricos. “Ressaltamos a importância da transferência de tecnologia aos países em desenvolvimento e recordar as disposições relativas à transferência de tecnologia, finanças, acesso à informação e direitos de propriedade intelectual” (parágrafo 73), aponta o texto. A interface tecnologia-política (parágrafao 76) também é citada, assim como a necessidade de cooperação científica e tecnológica internacional. Mas não é citado um mecanismo concreto para permitir a transferência de tecnologia e nem como se daria esse incremento da cooperação internacional na área científica. A transferência de tecnologia é geralmente citada como “mutuamente acordada”.
Fórum x Conselho – Ao contrário do que se cogitava, não foi indicada a criação de um Conselho de Desenvolvimento Sustentável na ONU. Apontada a criação de um “fórum intergovernamental de alto nível universal e político, com base nos pontos fortes, experiências, recursos e modalidades de participação inclusiva da Comissão sobre Desenvolvimento Sustentável, e, posteriormente, a substituição da Comissão” (par.84).
ECOSOC – Ao contrário do que não se previa, foi fortalecido o Conselho Económico e Social (ECOSOC) como “um órgão principal para a revisão das políticas, diálogo político e recomendações sobre questões de desenvolvimento econômico e social” (par.82 e 83).
PNUMA – O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) foi fortalecido “como a autoridade mundial líder ambiental que define a agenda ambiental global, que promove a aplicação coerente da dimensão ambiental do desenvolvimento sustentável dentro do sistema das Nações Unidas e que serve como um defensor de autoridade para o ambiente global”. Não foi transformado portanto em agência ambiental global, no nível de uma OMS ou UNESCO e nem indicadas as fontes para aumentar o seu orçamento (par.88).
Água – Reafirmados os “compromissos em relação ao direito humano à água potável e saneamento, que devem ser progressivamente implementados para as nossas populações com pleno respeito à soberania nacional” (par.121). Entretanto, ao contrário do que desejavam alguns, como a União Europeia, não foi estabelecida uma data-limite para a universalização do acesso a água e ao saneamento, e nem apontada a necessidade de uma Convenção internacional relacionada à água, o que é absolutamente fundamental para a gestão adequada desse recurso cada vez mais escasso e saturado em várias regiões. Sinais de pressões privatistas?
Povos indígenas – Além da citação dos Direitos da Natureza e da expressão Mãe Terra, o documento assinala, em referência aos povos indígenas: “Reconhecemos que os conhecimentos tradicionais, inovações e práticas dos povos indígenas e comunidades locais fazem uma importante contribuição para a conservação e uso sustentável da biodiversidade, e sua mais ampla aplicação pode apoiar bem-estar social e sustentável de subsistência. Reconhecemos ainda que os povos indígenas e comunidades locais são muitas vezes mais diretamente dependentes da biodiversidade e dos ecossistemas e, portanto, são muitas vezes mais imediatamente afetados por sua perda e degradação” (parágrafo 197).
Resíduos – Apontada a necessidade de gestão adequada de todas modalidades de produtos químicos e resíduos e sugerido que os países adotem “todas as medidas possíveis para evitar uma gestão pouco sólida de resíduos perigosos e o depósito ilegal de lixo, especialmente nos países onde a capacidade de lidar com esses resíduos é limitada” (par.219).
Educação – Destacada a educação de qualidade em todos os níveis como “uma condição essencial para alcançar o desenvolvimento sustentável, erradicação da pobreza, a igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, bem como para a realização dos objetivos de desenvolvimento acordados internacionalmente, incluindo os Objectivos de Desenvolvimento do Milênio”. (par.229).
Metas do Desenvolvimento Sustentável – Um dos pontos mais esperados da Rio+20 e também controversos. Não foi definida a criação dos Objetivos do Desenvolvimento sustentável (ODS), como era esperado, mas sendo citada sua “importância e utilidade”, com base na Agenda 21 (1992) e no Plano de Implementação de Johanesburgo (2002). Os ODS “devem ser coerentes e integrados na Agenda de Desenvolvimento das Nações Unidas para além de 2015, contribuindo assim para a realização do desenvolvimento sustentável e servindo como um driver para a implementação e integração do desenvolvimento sustentável no sistema das Nações Unidas como um todo” (par.246).
Finanças – Não foi criado um fundo para financiar o desenvolvimento sustentável, como queria o G77. ”Novas parcerias e fontes de financiamento inovadoras podem desempenhar um papel na complementação de fontes de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Nós encorajamos a sua exploração e utilização, ao lado dos meios tradicionais de execução”, diz o texto (par.253). Reiterado o compromisso assumido pelos países desenvolvidos em investir 0,7% do PIB em assistência ao desenvolvimento dos mais pobres (par.258)
Corrupção – Ponto importante, no parágrafo 266: “Ressaltamos que o combate à corrupção e aos fluxos financeiros ilícitos, tanto a nível nacional e internacional, é uma prioridade e que a corrupção é um sério entrave para a mobilização eficaz dos recursos e alocação de recursos e para as atividades que são vitais para a erradicação da pobreza, a luta contra a fome e o desenvolvimento sustentável. Estamos determinados a tomar medidas urgentes e decisivas em continuar a combater a corrupção em todas as suas manifestações, o que requer instituições fortes em todos os níveis, e instamos todos os Estados que ainda não tenham feito a que considerem ratificar ou aderir à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e começar sua implementação”. O texto não cita, entretanto, a conversão de pelo menos parte do trilionário mercado de armamentos e de segurança para atividades civis, o que representaria enormes recursos para a erradicação da pobreza e proteção do meio ambiente, incluindo o combate ao aquecimento global. Em 2011 foram gastos US$ 1,7 trilhão no setor de armas e orçamento militar como um todo no mundo. Os grandes poderes saem intactos da Rio+20.
Por José Pedro S.Martins Fonte: Vidamais21