14/07/2017
Após desafetar 59 áreas públicas de Salvador com um projeto de lei de 2014, a prefeitura novamente pediu e obteve autorização da Câmara de Vereadores para repetir o procedimento em 33 outros terrenos. A votação do Projeto de Lei 223/2017, de autoria do poder público municipal, aconteceu na última quarta (12/07) e, após uma sessão longa e recheada de polêmicas, aprovou o projeto em segunda votação, por 30 votos a 11.
Havia dúvidas sobre a realização da votação devido ao pedido de mandado de segurança, feito pela oposição para impedir a votação por falta de estudos técnicos sobre cada área a ser desafetada. A desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia, no entanto, negou o pedido deixando a Câmara livre para votar o projeto. O mérito da questão ainda será julgado. A bancada governista criticou a tentativa de judicializar a questão e supostamente ferir a independência da Câmara, mas o vereador Trindade defendeu a estratégia: “toda vez que essa Casa não for atendida, vai usar de todos os dispositivos legais para defender o bem comum. Foram solicitadas informações e estudos à prefeitura, mas a Casa não foi atendida”, justificou.
O Ministério Público da Bahia também foi mobilizado e assinou dois termos de compromisso com a prefeitura. Um deles foi proposto pelo Grupo Especial de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (Gepam) e outro pela Promotoria de Habitação e Urbanismo. No termo assinado com o Gepam, o prefeito compromete-se a vetar eventuais emendas que adicionem terrenos à lista inicial do projeto – foram incluídas 4 áreas – e submeter ao MP os estudos técnicos e administrativos que demonstrem o interesse público na transação de cada área a ser alienada.
Entenda o PL 223/2017
O projeto de lei listou inicialmente 32 áreas a serem desafetadas, ou seja, terem sua finalidade pública modificada. Depois de modificada essa finalidade, a prefeitura pode negociá-las. Tem sido essa a justificativa para a desafetação: conseguir recursos para o município. No entanto essa é uma estratégia questionada por técnicos, pois as áreas públicas são essenciais à vida da cidade.
A arquiteta urbanista Marina Teixeira, consultora do Gambá no projeto Áreas Públicas de Salvador (APSal), explica que, seja por suas funções ambientais, seja para servirem de suporte para instalação de equipamentos públicos e para as interações sociais, culturais e afetivas da população, as áreas públicas urbanas têm grande importância na construção da cidadania. Para ela, a prefeitura deve promover usos que reforcem a função social desses espaços e preservar um estoque de áreas disponíveis pensando nas demandas futuras, por isso a desafetação deveria ser um procedimento de exceção.
Abrir mão dessas áreas em troca de recursos imediatos beneficia a gestão atual, mas pode negligenciar as necessidades da população a longo prazo e a sustentabilidade da cidade. As áreas classificadas como de uso comum do povo (UCP) e uso especial (UE) não pertencem ao prefeito nem à sua gestão, afirma Marina, e sim à população e têm a prefeitura como guardiã. Além disso, aponta ela, não foi realizado levantamento da arrecadação esperada com a possível venda dos terrenos para avaliar o custo benefício do projeto.
O vereador Edvaldo Brito, que apesar de ser da base governista votou contra o projeto, ressaltou ainda que a justificativa presente no PL seria realizar os investimentos previstos no Plano Plurianual do município, mas este plano ainda não está pronto, portanto os vereadores não poderiam avaliar a pertinência da destinação dos recursos. Essas incertezas levaram a oposição e críticos do projeto a definir sua aprovação como um “cheque em branco” entregue ao atual prefeito.
No projeto anterior, foram desafetadas 59 áreas, sendo que dessas somente 14 foram negociadas gerando uma receita de cerca de R$82 milhões. Metade desse recurso, segundo vereadores,está sendo investido na construção do Hospital Municipal em local questionável, por estar à beira da represa de Ipitanga, manancial responsável por 40% do abastecimento da região metropolitana de Salvador (saiba mais).
O vereador Silvio Humberto criticou o PL 223/2017 por não pensar a longo prazo: “A falta de planejamento urbano sempre beneficiou os mesmos segmentos privilegiados, de quem possui as terras. Como podemos dizer agora as áreas que são servíveis ou não? O déficit de creches, por exemplo, foi sanado agora, mas é preciso também pensar no futuro”, defende.
Segundo o levantamento de Marina Teixeira, entre as desafetadas estão 20 áreas que se tornaram públicas na implantação de loteamentos. Isso porque, para implantar seus empreendimentos, os loteadores são obrigados a destinar terrenos como contrapartida ao município. Nessas áreas, a prefeitura poderia instalar equipamentos como escolas, creches, postos de saúde, praças entre outros para atender à população do entorno.
Faltou transparência e estudos
O grande volume de áreas abrangidas e a falta de informações técnicas e estudos aprofundados sobre a situação de cada terreno foi uma das principais críticas ao projeto. Na audiência pública realizada pela câmara no fim de maio, já surgiram inconsistências gritantes, como a inclusão de um terreno dentro do Parque do Vale Encantado, área verde onde a própria prefeitura trabalha para implementar uma Unidade de Conservação segundo definição do Plano Diretor do município. Foi necessária uma grande mobilização do grupo SOS Vale Encantado para que a área fosse retirada por meio de emenda ao projeto. Outros casos também contaram com mobilização forte, como as áreas públicas dos condomínios PitubaVille e Stella Sol. Ambos foram solucionados por meio de emendas ao projeto, mas outros casos sem a mesma repercussão podem ter passado em branco.
No projeto de lei enviado à Câmara consta que a fundamentação do projeto estaria no ofício nº 055/2017/GAB, no entanto esse ofício e seus estudos nunca foram disponibilizados aos vereadores, muito menos ao público em geral. Somente no dia da votação do projeto a equipe da vereadora Marta Rodrigues teve acesso ao documento, por meio do Ministério Público.