Entenda as boiadas urbanísticas, leis municipais de Salvador que vêm sendo suspensas através de liminares        

21/07/2023

O desembargador relator Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto foi acompanhado por 43 colegas do Tribunal de Justiça da Bahia no entendimento de que a Lei 9.509/20, de Salvador, deve ser suspensa até o julgamento do mérito. A sessão do Tribunal Pleno realizada nesta quarta (19), com apenas 7 votos divergentes, aponta para a confirmação do entendimento do Ministério Público da Bahia e diversas entidades, entre elas o Gambá, de que a lei contraria a Constituição Estadual e por isso não pode vigorar. Mas a Lei 9.509/2020 não está sozinha. Ela integra um conjunto de leis que urbanistas e ativistas socioambientais vêm chamando de “boiadas urbanísticas” por modificar o Plano Diretor e a Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo (LOUOS) de Salvador sem estudos técnicos nem participação popular.

A Lei 9.510/2020 também foi suspensa liminarmente em decisão proferida pelo TJ no início de fevereiro e com ela foi tornada sem efeito também parte da Lei 9.562/21. “A segunda concessão de liminar confirma que o Tribunal de Justiça da Bahia não se curva ao lobby das construtoras e está reconhecendo os perigos que o Ministério Público e as organizações civis organizadas apontaram nas leis questionadas – que alteraram o PDDU – e no processo legislativo da câmara municipal de salvador para aprová-las. Grande dia!”, comemorou Juliana Caires, advogada da Associação Stella4Praias, uma das entidades que representou ao Ministério Público solicitando o ingresso da ADIN e mais tarde tornou-se amicus curiae nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade movidas pela procuradora-geral.

A próxima a ser pautada é a Emenda 37 à Lei Orgânica do Município (LOM), considerada a mais problemática. O desembargador relator Manuel Bahia já proferiu seu voto concedendo a liminar que suspende a emenda, mas o julgamento está com pedido de vistas do desembargador Maurício Kertzman. Ainda precisa ser pautada a ação referente à Lei Complementar 74/2020 e as entidades aguardam que o Ministério Público ingresse também com ADIN solicitando a suspensão das leis 9.562/21 e 9.603/21.

Além da inconstitucionalidade existente por conta da alteração de mapas e regras do PDDU sem o devido processo legislativo especial, a tramitação das leis foi irregular mesmo para uma lei ordinária. A maioria delas teve relatório conjunto das comissões apresentado sem discussão com os vereadores, apresentação de emendas totalmente fora do assunto inicial do projeto de lei, inserção de mapas com as mudanças apresentados somente após a aprovação e, pelo menos a Lei 9.603/21, não contou com nenhuma discussão do assunto em plenária, sendo inserida na pauta de votação de forma quase clandestina. A Emenda nº 37, por modificar a Lei Orgânica do Município, também exigiria um intervalo entre as duas votações exigidas que não foi respeitado, assim como a divulgação prévia da pauta.

O vereador Alexandre Aleluia é o autor da grande maioria das emendas jabuti adicionadas aos projetos de lei. Enquanto presidente da Comissão de Constituição e Justiça, ele facilitou a tramitação das leis nas comissões apresentando relatório conjunto somente na hora das votações. O então presidente da casa, Geraldo Junior, por sua vez, poderia ter brecado o atropelo legislativo e não o fez. No caso da Emenda 37 ele contribuiu ativamente para desrespeitar o período de interstício entre as votações.

A bióloga e representante do Imaterra e SOS Vale Encantado na rede Convergência pelo Clima, Tatiana Bichara, analisa o impacto macro da decisão judicial como muito positivo. “A qualidade de vida e ambiental em Salvador é muito baixa. Mais de 95% da vegetação de Mata Atlântica foi destruída, o clima está sendo alterado, o regime hídrico-hidrológico está sendo alterado interferindo diretamente no clima, com grande parte da população em áreas de risco. Nesse cenário é de suma importância que as leis urbanísticas e ambientais e os instrumentos previstos nelas como a participação social, audiências e consultas públicas com os devidos esclarecimentos técnicos sejam rigorosamente seguidos. Estamos muito felizes com os desembargadores que tiveram muita coerência, sensibilidade e respeito à legislação vigente e ao histórico de participação da sociedade civil em prol da conservação”.

Impactos nas Ilhas de Salvador

Pescadores de diferentes pontos da Baía de Todos os Santos foram ao TJ sensibilizar os desembargadores contra a proibição da pesca.

O conjunto de leis das boiadas urbanísticas devota especial interesse às ilhas de Salvador: Frades, Bom Jesus dos Passos, Itapipuca, Língua de Baleia, Coqueiros e Santo Antônio. É uma região com áreas de valor ambiental previstas no PDDU que realmente precisam de regulamentação. Mas, segundo o coordenador executivo do Gambá, Renato Cunha, essa regulamentação precisa de um amplo debate com a sociedade e vereadores, o que não aconteceu. “A regulamentação é importante, não pode pegar carona em outras leis através de emendas jabuti. Precisa de um projeto de lei próprio, que seja amplamente discutido, principalmente com as comunidades nativas das ilhas, baseado em estudos técnicos e com uma tramitação cuidadosa na câmara”, defende.

A regulamentação proposta a trancos e barrancos através desse contrabando legislativo favorece claramente grandes empreendedores turísticos, ao passo que cerceia diversas atividades exercidas pelos moradores nativos como venda de artesanato, bebidas e alimentos e oferta de camping. O exemplo mais absurdo é a proibição da pesca em toda a área do entorno das ilhas, onde existe a APRN do entorno marítimo da ilha dos frades. A Lei nº 9.510/20 proibia a pesca e coleta de quaisquer espécies de peixes e mariscos, ferindo de morte a principal atividade econômica e um importante traço cultural dos nativos das ilhas da Baía de Todos os Santos. A restrição draconiana contrasta com a permissão para construção de complexos hoteleiros de até 15 metros de gabarito, pista de pouso de aviões, helipontos, aterramento de mangue para atividades empresariais e a construção de muros nas praias.

Felizmente a lei foi suspensa em primeiro de fevereiro, após relatório do desembargador Baltazar Miranda Saraiva favorável ao pedido de liminar.

Vale Encantado

Outra unidade de conservação afetada pelas boiadas urbanísticas é o Refúgio de Fauna do Vale Encantado, também previsto no PDDU de 2016, mas ainda não implementado pela prefeitura. Sua poligonal foi modificada pela Lei 9.509/20 e, através da Emenda 37 à lei orgânica, sua proteção foi fragilizada de forma a permitir a construção da Via Atlântica no coração da unidade de conservação.

Tatiana Bichara explica que os estudos para criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral já foram entregues à prefeitura desde 2018, com realização também de audiências públicas. Sendo inconcebível a alteração desta poligonal apenas com uma canetada da Câmara Municipal.

“Nós, do coletivo SOS Vale Encantado, nunca fomos consultados ou questionados a respeito desta legislação, mesmo estando há 25 anos lutando arduamente pela conservação destes remanescentes de Mata Atlântica da região de Patamares. No mesmo dia da decisão recebemos da Unesco o título de Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, este é um reconhecimento da importância da área, tanto do ponto de vista de biodiversidade quanto da presença da sociedade engajada, com pesquisas científicas e diversas atividades de educação ambiental”, comenta. 

Logomarca Gambá

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Reserva Jequitibá – Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, Serra da Jibóia, Elísio Medrado/BA